Por Duda Carvalho
Ter ou não ter mestres é uma polêmica da capoeira?
Ter ou não ter mestres é uma polêmica da capoeira?
Não, com certeza não, existem aí duas
questões colocadas.
Questão 1. Isso é uma falsa polêmica,
criada por oportunistas ou ingênuos desinformados, que negam ou desconhecem a
capoeira como manifestação humana de matriz africana, amplamente relacionada
com as demais manifestações afro existentes ou recriadas em território
brasileiro. Essa falsa polêmica é difundida por um minoritário grupo de capoeiristas,
que se destacou por ser parte da classe média do Rio de Janeiro e dominar
recursos midiáticos e de propaganda. Os mesmos se mostram insatisfeitos com a
mestria na capoeira, aparentemente porque a mestria contraria, simbolicamente e
ritualisticamente, uma iniciativa criada por eles denominada de Movimento Novo.
Esta iniciativa se caracteriza como um espaço de vadiagem que não traz a configuração
tradicional das rodas conduzidas e guiadas pelos legítimos representantes
centrais desse processo: os mestres. Vale a pena ressaltar que essa iniciativa,
de nova não tem nada. Apenas resgata antigos espaços de capoeiragem muito
comuns em Salvador, Recife e Rio de Janeiro em meados do século passado. Pode-se
dizer, com um termo específico da capoeiragem, que essa iniciativa não passa de
um Caô de um grupo de capoeiristas de classe média do Rio de Janeiro que querem
tirar uma ondinha de Mestre Bimba criando e inventando coisas “novas” na
capoeira. Porém, diferentes do Mestre Bimba, não dispõem de qualquer legitimidade
para tal e ainda, ao contrário de Mestre Bimba, acabam por descaracterizar a
capoeira e tendem a transformá-la em mera mercadoria, para atender seus
interesses pessoais.
Questão 2. Existem alguns
capoeiristas que se mostram insatisfeitos em sua relação com seus mestres, e
muitas vezes, arriscam a famosa carreira solo, realizando trabalhos
individualizados. Ainda que estejam galgando a esperada mestria enquanto
permanecem independentes, eles fomentam a capoeiragem sem mestre por pura
conveniência, já que, ao trocarem reconhecidos mestres por aventureiros,
retomam o discurso da mestria e voltam a defender sua titulação.
Em ambos os casos, está claro que
existem questões específicas e isoladas que em nada podem ser associadas a uma
polêmica ou que aglutinem argumentos suficientes para colocar em cheque a
tradição ancestral que sustenta a existência da mestria na capoeira.
É verdade que nem sempre houve
mestres na capoeira?
Não, não é. Vamos entender porque.
Muitas tradições de matriz africana
têm como característica a figura de autoridade legitimada pela comunidade, que
se torna responsável pela passagem dos saberes ancestrais. Essa autoridade não
deve ser confundida com os modelos de autoridade das sociedades eurocêntricas,
que se apresentam como agentes dos aparelhos repressores do estado. Constatar a
presença desses sujeitos é simples, basta observar a presença desse mediador,
mestre, puxador, pai, mãe, dentre outros tantos nomes dados a esses sujeitos no
samba, maculelê, puxada de rede, terno de reis, maracatu, congada, samba de
roda, Congo, caboclinho, marujada, nego fugido, candomblé, dentre algumas
outras manifestações menos conhecidas, mas expressivas, dos saberes e rituais
de matriz africana.
Portanto, inicialmente sempre houve
mestres na capoeira sim! E a “polêmica” levantada, que nega isso em determinado
momento histórico, é mentirosa e visa exclusivamente a apropriação cultural e a
descaracterização de um saber ancestral com fins pessoais, objetivando a venda
de um produto, qual seja a
formação de alguma coisa indefinida pelos mesmo, responsável em ensinar
capoeira Angola para crianças.
Levando em consideração que a
capoeira é uma manifestação predominantemente afro-brasileira, ela herda,
portanto, essa característica que requer a existência de um responsável pelo
rito de passagem. Segundo algumas fontes de pesquisa, a titulação de ‘mestre’ teria sido
herdada da relação com as atividades marítimas, a partir de vivências da
cultura portuária, devido à forte presença de africanos ainda escravizados na
realização destes trabalhos. Ainda que a nomenclatura "mestre" tenha
sido incorporada à capoeira tardiamente, já no século XX, essa função de
responsável por ensinar e conduzir o processo de aprendizado, dentro das
características específicas dos africanos, já existia na capoeira e em todas as
manifestações oriundas dos negros africanos. Dessa forma, é verdade que o nome “mestre”
nem sempre esteve na capoeira, mas a figura que desempenha este papel sim.
Portanto, ao incorporar-se o título de “mestre” à capoeira, o mesmo vem
carregado de toda uma simbologia histórica e ancestral que, lamentavelmente é
esquecida, ou intencionalmente negada, pelo apresentador dessa propaganda, que
se coloca como um representante de vendas de um produto despido de toda sua
história e riqueza ancestral.
Ao citar períodos históricos de
inexistência da mestria, usando como referência Besouro Mangagá e Manduca da
Praia, o desinformado marqueteiro, demonstrando sua extrema limitação histórica,
é incapaz de reconhecer que esses sujeitos não desempenhavam apenas o papel
análogo aos dos mestres nos modelos mais comumente vistos nas demais
manifestações de matriz africana. Eram tempos em que a mestria na capoeira coexistia
com o aprendizado e a vivência espontânea da rua. E ainda que a predominância,
pelo assim descrita nos relatos históricos, fosse da subversão e das brigas de
rua, isto não invalida toda a vivência concomitante destes mestres com os mais
variados capoeiristas oriundos de outros processos de aprendizagem, estes
também carregados de valores ancestrais e constituídos de seus rituais e
tradições específicos a cada época.
Usar esses capoeiristas para sugerir
uma "era de valentões" como argumento para endossar a falsa polêmica
da "capoeira sem mestres" é a expressão mais concreta de uma clara
tentativa de descaracterização da capoeira como manifestação humana ancestral.
De fato, ainda hoje existem figuras que se comportam os citados Besouro e , e
nem por isso podemos dizer que vivemos uma “era de valentões” e que a capoeira
pode existir sem mestres. É estranho sobretudo este discurso partir de um
sujeito que é titulado na capoeira como uma autoridade, mas que passa a negar esta
titulação no momento em que isto se torna conveniente. Ou seja: com o intuito
de vender o seu produto, atropela-se a própria titulação.
Oportunistas e canalhocratas da mais
baixa categoria.
É de praxe, quando deseja-se descaracterizar ou transformar a história de
alguma coisa, como no caso em questão, que se faça a supressão partes dos fatos
com o objetivo de adequar o discurso aos fins aos quais se pretende chegar.
Minha curiosidade é saber porque o falso profeta em questão nega, na teoria de “eras” sugerida no vídeo, os
significativos processos ancestrais ligados à cultura de guerra e luta das tradições
africanas dentro dos quilombos. Caso ele aponte a falta de documentação para
fazer essa análise, será que ele consegue resistir ao fato de que as suposições
dessa ancestralidade centralizada nos sujeitos mediadores, puxadores,
condutores, orientadores, mestres se consolidou nos séculos subsequentes? E
que, nos dias de hoje, tem a sua afirmação difundida em todos os espaços onde
essas manifestações existem, inclusive no ambiente onde o mesmo é formado?
Por fim, podemos ainda retrucar a
ridícula teoria de “eras” e afirmar que a mestria não surge com Mestre Bimba e Pastinha como
ele sugere. Ela se consolida formalmente com estes sujeitos, que muito antes de
terem essa titulação reconhecida e legitimada, já vinham cumprindo essa função,
de acordo e influenciado pelos seus valores ancestrais. É fato que suas
propostas de ensino sofrem influências diversas, tanto com o ingresso de novos
membros nos grupos de capoeira quanto a com exigências da sociedade
modernizada. Entretanto, é preciso deixar claro que a necessidade de uma
reestruturação nos processos de ensino/aprendizagem não nega em nada os valores
ancestrais intrínsecos à capoeira, desde que a preservação destes seja o
objetivo principal das medidas de reformulação.
Se ainda resta alguma dúvida da
existência da mestria antes desses ícones da capoeira, vale recordar uma das
formas de aprendizado que antecede qualquer metodologia de ensino desenvolvida
por influências alternativas aos saberes africanos, a oitiva. O ensino pela
oitiva é um dos processos que marcam a presença dos mestres Bimba e Pastinha e
que se constituem como formas de passagem dos saberes da capoeira e de outras
manifestações de matriz africana.
Triste ver que, quando a fala parte
de um sujeito letrado, pequeno burguês e branco, nitidamente suas ideias ganham
maior aparência de verdade e tem o poder de influenciar muitos. Pena que nem
todos meus irmãos capoeiristas conseguem ver o que ele faz com a capoeira ao
deixá-la nua de sua herança ancestral e histórica.
O texto se refere a este vídeo, divulgado na última semana pelas redes sociais.