sexta-feira, 17 de março de 2017

CAPOEIRA SEM MESTRE

Por Duda Carvalho

Ter ou não ter mestres é uma polêmica da capoeira?
Não, com certeza não, existem aí duas questões colocadas.
Questão 1. Isso é uma falsa polêmica, criada por oportunistas ou ingênuos desinformados, que negam ou desconhecem a capoeira como manifestação humana de matriz africana, amplamente relacionada com as demais manifestações afro existentes ou recriadas em território brasileiro. Essa falsa polêmica é difundida por um minoritário grupo de capoeiristas, que se destacou por ser parte da classe média do Rio de Janeiro e dominar recursos midiáticos e de propaganda. Os mesmos se mostram insatisfeitos com a mestria na capoeira, aparentemente porque a mestria contraria, simbolicamente e ritualisticamente, uma iniciativa criada por eles denominada de Movimento Novo. Esta iniciativa se caracteriza como um espaço de vadiagem que não traz a configuração tradicional das rodas conduzidas e guiadas pelos legítimos representantes centrais desse processo: os mestres. Vale a pena ressaltar que essa iniciativa, de nova não tem nada. Apenas resgata antigos espaços de capoeiragem muito comuns em Salvador, Recife e Rio de Janeiro em meados do século passado. Pode-se dizer, com um termo específico da capoeiragem, que essa iniciativa não passa de um Caô de um grupo de capoeiristas de classe média do Rio de Janeiro que querem tirar uma ondinha de Mestre Bimba criando e inventando coisas “novas” na capoeira. Porém, diferentes do Mestre Bimba, não dispõem de qualquer legitimidade para tal e ainda, ao contrário de Mestre Bimba, acabam por descaracterizar a capoeira e tendem a transformá-la em mera mercadoria, para atender seus interesses pessoais.
Questão 2. Existem alguns capoeiristas que se mostram insatisfeitos em sua relação com seus mestres, e muitas vezes, arriscam a famosa carreira solo, realizando trabalhos individualizados. Ainda que estejam galgando a esperada mestria enquanto permanecem independentes, eles fomentam a capoeiragem sem mestre por pura conveniência, já que, ao trocarem reconhecidos mestres por aventureiros, retomam o discurso da mestria e voltam a defender sua titulação.
Em ambos os casos, está claro que existem questões específicas e isoladas que em nada podem ser associadas a uma polêmica ou que aglutinem argumentos suficientes para colocar em cheque a tradição ancestral que sustenta a existência da mestria na capoeira.

É verdade que nem sempre houve mestres na capoeira?
Não, não é. Vamos entender porque.

Muitas tradições de matriz africana têm como característica a figura de autoridade legitimada pela comunidade, que se torna responsável pela passagem dos saberes ancestrais. Essa autoridade não deve ser confundida com os modelos de autoridade das sociedades eurocêntricas, que se apresentam como agentes dos aparelhos repressores do estado. Constatar a presença desses sujeitos é simples, basta observar a presença desse mediador, mestre, puxador, pai, mãe, dentre outros tantos nomes dados a esses sujeitos no samba, maculelê, puxada de rede, terno de reis, maracatu, congada, samba de roda, Congo, caboclinho, marujada, nego fugido, candomblé, dentre algumas outras manifestações menos conhecidas, mas expressivas, dos saberes e rituais de matriz africana.
Portanto, inicialmente sempre houve mestres na capoeira sim! E a “polêmica” levantada, que nega isso em determinado momento histórico, é mentirosa e visa exclusivamente a apropriação cultural e a descaracterização de um saber ancestral com fins pessoais, objetivando a venda de um produto, qual seja a formação de alguma coisa indefinida pelos mesmo, responsável em ensinar capoeira Angola para crianças. 
Levando em consideração que a capoeira é uma manifestação predominantemente afro-brasileira, ela herda, portanto, essa característica que requer a existência de um responsável pelo rito de passagem. Segundo algumas fontes de pesquisa, a titulação de ‘mestre’ teria sido herdada da relação com as atividades marítimas, a partir de vivências da cultura portuária, devido à forte presença de africanos ainda escravizados na realização destes trabalhos. Ainda que a nomenclatura "mestre" tenha sido incorporada à capoeira tardiamente, já no século XX, essa função de responsável por ensinar e conduzir o processo de aprendizado, dentro das características específicas dos africanos, já existia na capoeira e em todas as manifestações oriundas dos negros africanos. Dessa forma, é verdade que o nome “mestre” nem sempre esteve na capoeira, mas a figura que desempenha este papel sim. Portanto, ao incorporar-se o título de “mestre” à capoeira, o mesmo vem carregado de toda uma simbologia histórica e ancestral que, lamentavelmente é esquecida, ou intencionalmente negada, pelo apresentador dessa propaganda, que se coloca como um representante de vendas de um produto despido de toda sua história e riqueza ancestral. 
Ao citar períodos históricos de inexistência da mestria, usando como referência Besouro Mangagá e Manduca da Praia, o desinformado marqueteiro, demonstrando sua extrema limitação histórica, é incapaz de reconhecer que esses sujeitos não desempenhavam apenas o papel análogo aos dos mestres nos modelos mais comumente vistos nas demais manifestações de matriz africana. Eram tempos em que a mestria na capoeira coexistia com o aprendizado e a vivência espontânea da rua. E ainda que a predominância, pelo assim descrita nos relatos históricos, fosse da subversão e das brigas de rua, isto não invalida toda a vivência concomitante destes mestres com os mais variados capoeiristas oriundos de outros processos de aprendizagem, estes também carregados de valores ancestrais e constituídos de seus rituais e tradições específicos a cada época.
Usar esses capoeiristas para sugerir uma "era de valentões" como argumento para endossar a falsa polêmica da "capoeira sem mestres" é a expressão mais concreta de uma clara tentativa de descaracterização da capoeira como manifestação humana ancestral. De fato, ainda hoje existem figuras que se comportam os citados Besouro e , e nem por isso podemos dizer que vivemos uma “era de valentões” e que a capoeira pode existir sem mestres. É estranho sobretudo este discurso partir de um sujeito que é titulado na capoeira como uma autoridade, mas que passa a negar esta titulação no momento em que isto se torna conveniente. Ou seja: com o intuito de vender o seu produto, atropela-se a própria titulação.
Oportunistas e canalhocratas da mais baixa categoria.
É de praxe, quando deseja-se descaracterizar ou transformar a história de alguma coisa, como no caso em questão, que se faça a supressão partes dos fatos com o objetivo de adequar o discurso aos fins aos quais se pretende chegar.
Minha curiosidade é saber porque o falso profeta em questão nega,  na teoria de “eras” sugerida no vídeo, os significativos processos ancestrais ligados à cultura de guerra e luta das tradições africanas dentro dos quilombos. Caso ele aponte a falta de documentação para fazer essa análise, será que ele consegue resistir ao fato de que as suposições dessa ancestralidade centralizada nos sujeitos mediadores, puxadores, condutores, orientadores, mestres se consolidou nos séculos subsequentes? E que, nos dias de hoje, tem a sua afirmação difundida em todos os espaços onde essas manifestações existem, inclusive no ambiente onde o mesmo é formado?
Por fim, podemos ainda retrucar a ridícula teoria de “eras” e afirmar que a mestria não surge com Mestre Bimba e Pastinha como ele sugere. Ela se consolida formalmente com estes sujeitos, que muito antes de terem essa titulação reconhecida e legitimada, já vinham cumprindo essa função, de acordo e influenciado pelos seus valores ancestrais. É fato que suas propostas de ensino sofrem influências diversas, tanto com o ingresso de novos membros nos grupos de capoeira quanto a com exigências da sociedade modernizada. Entretanto, é preciso deixar claro que a necessidade de uma reestruturação nos processos de ensino/aprendizagem não nega em nada os valores ancestrais intrínsecos à capoeira, desde que a preservação destes seja o objetivo principal das medidas de reformulação.
Se ainda resta alguma dúvida da existência da mestria antes desses ícones da capoeira, vale recordar uma das formas de aprendizado que antecede qualquer metodologia de ensino desenvolvida por influências alternativas aos saberes africanos, a oitiva. O ensino pela oitiva é um dos processos que marcam a presença dos mestres Bimba e Pastinha e que se constituem como formas de passagem dos saberes da capoeira e de outras manifestações de matriz africana.


Triste ver que, quando a fala parte de um sujeito letrado, pequeno burguês e branco, nitidamente suas ideias ganham maior aparência de verdade e tem o poder de influenciar muitos. Pena que nem todos meus irmãos capoeiristas conseguem ver o que ele faz com a capoeira ao deixá-la nua de sua herança ancestral e histórica.

O texto se refere a este vídeo, divulgado na última semana pelas redes sociais. 

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